Em Grundrisse: Manuscritos Econômicos de 1857-1858: Esboços da Crítica da Economia Política, Karl Marx discorre sobre o futuro do capitalismo. No trecho “Fragmento sobre as Máquinas”, presente nessa obra que foi lançada no Brasil pela Editora Boitempo, o economista elabora sobre o conceito de Intelecto Geral.
Para Marx, o Intelecto Geral se refere ao conjunto de todo o conhecimento, saber científico e tecnológico acumulado pela sociedade. Para ele, à medida que o capitalismo avançasse, essa inteligência coletiva se tornaria a principal força produtiva, sendo materializada em máquinas, automação e sistemas organizacionais.
Com isso, a geração de riqueza aria, então, a depender menos do trabalho físico e mental individualizados e cada vez mais da aplicação desse conhecimento social.
O Intelecto Geral, porém, seria apropriado de forma privada pelo capital.
167 anos nos separam desses escritos de Karl Marx. Muito provavelmente o economista jamais poderia prever com exatidão todos os avanços que as máquinas apresentariam, principalmente nas últimas três décadas, mas cada vez mais é perceptível que suas previsões estavam corretas.
As fases do capitalismo são divididas comumente a partir da análise sobre a centralidade do poder no sistema de produção. Simplificando a história a partir da perspectiva de Ernest Mandel, partimos do mercantilismo (ou proto-capitalismo) para o capitalismo industrial. Depois disso, tivemos o capitalismo monopolista, o capitalismo keynesiano e, por fim, o capitalismo financeirizado, também conhecido como neoliberalismo ou capitalismo rentista.
Em 2015, em e Vital: Biocapital e a Nova História do Trabalho Terceirizado, a pesquisadora Kalindra Vora cunhou o termo Capitalismo de Patentes. Para ela, a partir de meados do século XXI, as patentes e propriedades intelectuais se tornaram os principais mecanismos de acúmulo de capital, com corporações e instituições controlando recursos vitais por meio do direito de propriedade e extraindo valor não apenas da produção, mas da monopolização do conhecimento.
É importante perceber que essas fases do capitalismo não se superam, mas se sucedem. Mesmo em uma fase, as práticas de outras fases continuam existindo. Ainda hoje temos práticas mercantis, por exemplo, no comércio de pedras preciosas; os industrialistas continuam tendo algum poder; os keynesianos brigam para existir em governos progressistas; e os rentistas começam a travar uma guerra cada vez mais aberta contra os detentores de patentes, utilizando o seu poder ainda existente. Uma fase do capitalismo diz respeito à forma central de acumulação de capital e à centralidade do poder em uma era, não sobrescrevendo as práticas de uma era anterior.
Levando em consideração outros autores, como Vijay Prashad e Shoshana Zuboff, também podemos observar alguns pontos importantes sobre essa nova fase do capitalismo.
Prashad, por exemplo, fala sobre a manutenção das estruturas hierárquicas entre o capitalismo central e o Sul Global, abordando como as patentes de medicamentos, por exemplo, perpetuam uma dependência em países pobres, como no caso de antirretrovirais para HIV em alguns países do continente africano.
Na tecnologia, essa dinâmica é bastante parecida com outros momentos da história, porém agora a matéria-prima são os dados, enquanto o produto final é o processamento desses dados por meio de hardwares e softwares patenteados pelas Big Techs. Também se reflete na produção, com o Sul Global sendo o responsável pela produção industrial, enquanto o Norte Global capitaliza o conhecimento.
Já Shoshana Zuboff aborda como a propriedade intelectual também acaba por matar a inovação real, quando as patentes transformam o conhecimento coletivo em lucro, ignorando qualquer ganho social desse conhecimento.
Porém, esse avanço também tem gerado diversas contradições no sistema, com diversos bilionários vinculados às Big Techs tentando romper com os direitos autorais para que consigam o volume de dados necessários para o treinamento de seus modelos de linguagem, visão computacional, estatísticas, entre outros, a serem patenteados por eles próprios. Isso pode nos levar, em breve, a uma revisão das leis de direitos autorais ao redor do mundo, para superar as limitações impostas pelas leis criadas em eras anteriores do capital. Sam Altman, chefe da OpenAI, tem sido um dos principais defensores dessas revisões.
Isso também tem gerado crises nos países do capitalismo central, como nos Estados Unidos, em que os representantes do capitalismo rentista, que podem ser representados por Donald Trump, têm entrado em embates com os representantes do capitalismo de patentes, que podem ser representados por Elon Musk. Trump ainda esboça um desejo pelo controle estatal desse conhecimento, trazendo a produção para dentro dos Estados Unidos, enquanto os chefes das Big Techs sabem que, para manter o controle do poder e a acumulação de capital, precisam manter a produção material de suas patentes no Sul Global.
Nas últimas semanas, a mídia tem mirado nessa contradição na tecnologia da informação, porém é importante percebermos que outros campos, como o de fármacos e o do agronegócio, enfrentam essa mesma contradição.
Analisar essa realidade complexa é importante, pois ela está diretamente atrelada às práticas e táticas que podemos ter para qualquer tipo de enfrentamento.
Um exemplo foi a análise de como a mídia hegemônica foi vital para a manutenção e construção do neoliberalismo. Nessa realidade, nossa tática de ocupar espaços de qualquer forma possível, seja por enfrentamentos em debates ou entrevistas para esse tipo de mídia, se mostrou profundamente acertada.
Porém, o capitalismo de patentes não depende mais da mídia hegemônica, tendo o controle sobre os algoritmos e infraestruturas das novas mídias. Então, ocupar espaços, da forma como fazíamos antes, por enfrentamento direto, ainda seria uma tática válida?
Outro ponto importante é entender que esse novo poder capitalista não depende necessariamente de uma democracia liberal ou de um estado de bem-estar social para existir. Quanto maior o poder de persuasão, mais protegidas estarão as patentes. Isso também pode apontar que a mudança da centralidade de poder no capitalismo é um dos vários pontos que colocaram a democracia liberal na crise em que ela se encontra atualmente.
Os avanços tecnológicos, portanto, colocaram o controle da comunicação nas mãos dos detentores de patentes, como também se fortalecem com o enfraquecimento da democracia.
Mesmo o conhecimento livre, sejam aulas ou cursos gratuitos, ou o desenvolvimento de softwares livres, se encontra sob a lógica desse modelo de capitalismo, em que as aulas públicas se tornam ferramentas de acumulação de capital por meio de publicidades direcionadas e o desenvolvimento de um software livre apenas tem o objetivo de torná-lo parte de um software patenteado, como Microsoft e Amazon têm feito nos últimos anos